segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Pornografia do Nordeste Europeu, Parte 2: Música para Aeroportos


Não tenho asma, mas tenho dificuldade em respirar. O som ofegante da minha respiração aterrada, sem medo de existir mais um dia, sem medo de respirar outra vez, mas de um depender da outra. Não quero respirar mais a viver e saber que tenho de o fazer. Morrer não é escolha para quem não tem nome como eu. Às vezes as pessoas chamadas “Hanns”, com a cara apontada para sítios, parecem, mas eu não me chamo Hanns. Às vezes tenho a impressão que esperam por uma resposta que não existe, trocam sins organizados, belos e cheios de significado para significar algo que se fosse nada já seria muito. Penso que como todos os comportamentos animais seja este também necessário à sobrevivência. Comunicar não comunicam porque só dizem o que já sabem ou não precisam de saber. Já sei que está frio hoje, que estás triste já o vejo na tua cara, porquê não existe, não posso nem quero fazer nada. Vai do bom dia à boa noite, a espera que apaga o sorriso fino não sonante. Diz, quem foi à Terra que Marte não existe, ou barbaridade parecida que as pessoas partilham. Morreu o Sol quando desapareceu já há semanas, tenho a certeza disso, pelo menos eu já não o volto a ver. O meu galo fala comigo de noite o dia inteiro, quando vou de férias ponho-o em lusco-fusco, assim ele não fica confuso e faz o que lhe apetece. Nunca gostei de anarquistas porque não respeitam o meu galo que canta de manhã como o seu senhor Sol, a senhora lâmpada. Reclamam que só um animal com o cérebro de tamanho mais pequeno que o miolo da noz era capaz dessa atrocidade de acordar alguém que não quer acordar. Eu não acho, o rapaz só me acorda quando lhe ligo a lâmpada e, assim, já não me parece possível acordar-me. No verão ele dorme no meu quarto, o único sítio da casa que não apanha luz de dia quando fecho as portas. Ele cheira mal, mas perdoo-lhe porque não dá conta. No verão não nos damos tanto, tal como no Inverno, ele dorme no meu quarto, eu abro as janelas e fecho-as de novo e durmo eu. Acredito que ele se sinta isolado, mas lá na varanda dele, onde canta para toda a gente passa sempre uma música ambiente. Ele gosta particularmente de Brian Eno. Hoje é o dia de Music for Airports. Dizem que o meu galo há-de ficar deprimido. Eu digo que com o frio que passa não se há de lembrar muito disso. Mas pelo sim pelo não todos os dias lhe dou um quarto de prozac na comida. Hoje estou particularmente feliz, porque comi da comida do galo, até respiro sem pensar.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O Giro para Fora, Parte 1: O Ataque Cardíaco do Muco Ácido


Estava um homem de pé, há sempre bastantes homens de pé e também mulheres, mas este era o homem da nossa história. De repente caiu para o lado.
­­— Porque é que não caiu para a frente?
Deu-lhe o que se chama vulgarmente de ataque cardíaco. Não se sabe de onde o homem veio, nem para onde ia, aquilo que interessou às pessoas com quem ele passou o resto da sua vida foi o que aconteceu naquele momento. Aquelas palavras pareceram-lhe tão estranhas, aproximavam-se daquela área da humanidade com que nunca contactou: enfarte agudo do miocárdio. A primeira coisa que ele não percebeu foi chamarem-lhe de agudo, já que ele achava aquilo bastante grave, ideia que o confundiu ainda mais quando começaram a dizer que a máquina que fazia bips estava desafinada. Músico como era reparou que ela estava desritmada, o que o fez pensar que os senhores com quem estava a lidar, além de gostarem muito de branco, não passavam de uma cambada de imbecis.
­­— Mas, ouve lá, o tipo teve um enfarte e agora está com fibrilação?
­­— Cala-te!
O homem pensou que o podiam achar um homem de poucas palavras, já que ele não falava muito, mas pareceu-lhe que ninguém ali estava à espera que ele dissesse alguma coisa. Pareciam absorvidos em olhos para tudo o que fosse ligeiramente plástico ou metálico ou eléctricos, ficou com pena por não possuir nenhuma dessas qualidades, além de não conseguir entender o linguajar desta gente. Comportamento que ele ignoraria mais tarde quando o electrizaram a ele, pareceu-lhe lógico que agora lhe ligassem mais importância. Isto confirmou a sua teoria de estar a lidar com a tal cambada com ligeiro atraso mental, porque a ele já lhe parecia estar suficientemente mal sem andarem por aí a dar-lhe choques. Por enquanto ainda pensava que o estarem a ignorar, além de ser uma falta de respeito, era completamente estúpido. Aí começou a pensar que afinal tinha sido abduzido por alienígenas extremamente parecidos a seres humanos, estupidez dos alienígenas porque já se sabe que ser humano não é aliene. Mas nunca pensou que um ser humano se pudesse comportar assim e logo por aí concluiu que eram seres não humanos. Por aí concluiu também que se eram seres não humanos não percebiam muito da poda. Conclusão que muito o ajudou a compreender os choques e o fraco ouvido musical. Daqui não concluiu mais nada.
— Porquê?
­­­­— Porque morreu porra!

domingo, 23 de setembro de 2012

O Mundo do Erostismo Esotérico, Parte 2: O Muco Ácido


“Pensava eu que as flores não podiam cair do céu, como um sopro num dente de leão que faz levitar sementes com o vento. Estas caíam um pouco mais violentamente, o vento não as acariciava tanto, tudo o que é grande não é querido. As pequenas coisas, como os bebés, os coalas e os grãos de areia safam-se sempre de serem olhados de má maneira. As pessoas sentem que a beleza está nos pormenores que não veem, mas apenas conseguem perceber isso naquilo que realmente conseguem enxergar, por mais mínimo que seja. Ligeiramente maldosa a hora do dia em que decidi que era boa ideia ler Rushdie sob o efeito de ácidos. Alterar a mente como tanto gostavam idiotas como o John Lennon nunca deve ajudar à cultura. Eles diziam que sim, que lhes retirava as barreiras do pensamento impostas pelo mundo. Eu por mim sinto que apenas existo em mim mesmo, se há uma barreira é só minha, sendo a mente minha exijo fazer dela o que eu quiser. A tarde estava serenada de gente calma, como se ainda ninguém tivesse percebido como o mundo se encontra. Como se ninguém tivesse entendido como as belas sinfonias que ouvem servem apenas para embelezar uma humanidade não humana. Teria de arrepiar caminho naquele dia. Deixei os “Filhos da Meia-Noite” no banco de jardim em que me sentei mais cedo, neste parque, e comecei a correr para ver se as flores paravam de chover. Foi quando dei conta que as flores choviam de árvores em Primavera, à saída do jardim, pensei então para mim, enquanto o mundo se afastava cada vez mais, que os ácidos ainda não eram suficientes. Por isso busquei o meu livro e levei-o para um banco de rua, pus mais um ácido na ponta da língua, a ver se as flores tinham vontade de descer de novo. Esta diligência cultural empreendida com tanta vontade não se podia continuar. Era difícil ler quando as letras coloridas já se mexiam. As flores pareciam ser hexágonos a voar das páginas para o céu, ou pelo menos parecia-o quando os meus olhos freneticamente fechavam e abriam para não ver quase nada. Sinto uma forte vontade de bater em alguém. Tenho de comprar uns sapatos de fivela com a semanada. Espancarei o vendedor ou vendedora de cor ou sem ela, se bem que este ácido seja maravilhoso para o racismo porque não há preto e branco, só cores brilhantes e vivas para todos. Se não há boa primeira aparência, pelo menos que a última seja decente. Espero que os sapatos tenham boa sola, arranjada com um bom desenho gravado na borracha, tudo o que se vê deve ser belo, se for eu a obra de arte que quero ser. Não gosto de me ver ao espelho, o Rushdie disse-me uma vez que o nariz grande não é um defeito, eu não acredito em homens de fé duvidosa. Se eu não tivesse fé, nem a minha mãe, não existia. Se eu não tivesse fé, porque a minha mãe não tinha fé, não poderia escolher se tinha fé ou não, mas poderia também ter dado menos trabalho à minha mãe. A consciência diz que talvez se não existisse… qualquer coisa. As pessoas são mesmo bonitas quando passam. As crenças de quem me olha são estranhas, como se um homem estivesse a falar em línguas sem respirar, acompanhado por um tambor que não para de percutir sempre o mesmo som de si mesmo desenfreadamente, enquanto um piano falha acordes e alguém bate com um martelo em madeira, depois tudo para e aparece um agudo apito sonoro que é quase infinito. Só desaparece quando deus o corta sentidamente com uma espada de pouca paciência. Estou ligeiro, peso pouco, a minha idade não me deixa ser maior. O meu mundo de adolescente colorido sem borbulhas — sinais vermelhos de repulsa para quem olha, sinais de stop para as miúdas giras, as menos giras são mais compreensivas mas não as quero — era algo de que gostava em pequenas doses. A realidade desfaz-se sempre em frente dos meus olhos. Como posso viver em algo que não acredito? Gostava que alguém morresse de ataque cardíaco à minha frente, alguém o fez neste momento. Sinto-me bem, mas não me sinto deste mundo, enquanto alguém morre eu permaneço vivo. Estou iluminado.”

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Como Fazer Amor com Crianças, Parte 1: O Cigano com Algum Dinheiro


As folhas voam perto da cabeça do rapaz sentado numa mota que girava sem sentido e voltava sempre à origem. As circunferências imperfeitamente desenhadas das folhas e do carrossel pareciam não acabar no aterrorizado olhar de seis anos do rapaz imóvel e contraído que possuía a firme convicção de que a queda de trinta centímetros o ia magoar severamente. Nos seus ouvidos ressoavam notas dispersas de música popular que a bonomia populista do cigano que comandava as operações tinha escolhido. As falhas óbvias de estilo eram compensadas pela literalmente não interpretada letra, que referia a identidade desconhecida do pai do filho de alguma mulher perdida no meio do mundo devasso e crítico. A versão era muito ligeira, com uma voz inocente de homem que atrai todos os outros homens que amam meninos. A ideia de esta canção parecer algo pouco usual aos olhos de uma criança é válida, mas ela não se mexia, nem se preocupava com a pérfida lírica deste homem cinzento. O raciocínio ainda não era completo, as palavras ainda não eram coesas, mas os olhos não paravam de ver. Preservar a inocência de uma criança é apenas um eufemismo para preservar a estupidez, mas o detalhe da música de circo, versão pós-erótica homenageando a má-língua, era desnecessário. A felicidade não se via, apenas a interrogação dos olhos. O entusiasmo desapareceu no preciso instante em que se sentou, levado por dois braços de gigante. Os braços da sua mãe eram firmes enquanto ele permanecia ligeiro. Olhou para a mãe e reparou como o seu rosto repentinamente espelhava desprezo. Momento exato em que o disco infinitamente repetido começava a tocar a música sobre origens semiológicas, o que o fez sentir-se mais pesado, os braços da mãe já não eram firmes, ele já sentia o medo de cair mesmo antes de se sentar. O desprezo provocado pelo mundo, de alguém que não o produz por si, para alguém que não o merece. Mas a preocupação que o atormentava ainda não era esta, o que sentia no momento era que “mais uma volta mais uma viagem” não devia ser algo de bom. Declaração assim percebida por sua exclusiva convicção, porque não havia mais ninguém que mostrasse interesse por tal viagem, ou que lhe impusesse algum tipo de sensação mudando plasticamente a cara. Tudo é mais pequeno depois de crescer e perceber, olhar e entender. O desprezo não se sente, ressente-se, mas isso só se vai compreender mais tarde. Quando a meia-noite chegar e o galo cantar. Não havia dúvida de que o dia não era muito bom, a luz já era muito e fraca e angular, mas só neste momento o Sol se mostrou, mais laranja que o habitual, por baixo das imensas nuvens melancolicamente vistas. Enquanto a criança olhava o mundo, caía na noite e no seu discreto absurdo, esta tornou a fazer desaparecer para aparecer, e a espera deixou de acontecer. A criança caiu mas não se sentiu mal, não lhe correram as lágrimas, não falou, ninguém olhou. Foi a primeira vez que desprezou a atenção que lhe trazia a pena. Ergueu-se, enquanto o cigano contava, a mãe se preocupava e o resto do mundo não estava ali. Andou, enquanto o dinheiro passava pelas mãos do cigano, a mãe sentia vergonha dentro do seu próprio pensamento e se preocupava tanto com a ideia de o mundo pensar tão mal dela, o próprio mundo que não estava presente, o mundo que pouco depois desapareceu. O menino continuou a andar e caiu pelo desfiladeiro abaixo, ninguém sabe porquê, ninguém sabe como, ninguém olhou. No fim já toda a gente via, a mãe chorava e o cigano fugia. Mais uma vida perdida para nunca mais ser. Uma mãe em desamparo que nunca mais sente, só ressente, uma vergonha que nunca foi dela.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Pornografia do Nordeste Europeu, Parte 1: Morte ao Final Feliz


Detesto acordar de noite quando adormeço e ainda é de dia. Por isso não costumo adormecer bem de dia, mesmo assim não me incomoda acordar já com o dia bem aberto ou até com sinais de já querer fechar, algo que adquiri por habituação. Tudo isto soa estranho a alguém que não vive num pais nórdico como este que tem setenta e três dias em que apenas se vê o dia e cinquenta e um dias em que só se vê noite. Só uma vez me aconteceu acordar de noite adormecendo de dia e ainda hoje me arrependo de não prolongar o sofrimento com a visão neorromântica do pôr-do-sol. Aqui os galos não se dão bem, especialmente por causa do frio, porque o galo pode-se servir da luz que de quando em quando o ilumina quando me apetece que cante. Olho para a rua e vejo as lâmpadas que só funcionam após setenta e três dias de verão, aqui os candeeiros são mais interessantes que os animais, hibernam quando está calor, pelo menos o calor de cá. Mesmo assim não são mais interessantes que os galos, esses não hibernam, especialmente o meu, que até gosta quando lhe ponho a lâmpada a funcionar. Como só tenho uma lâmpada que funciona, de momento, metade do tempo estou eu com a luz a outra metade o galo, o que me levou a ter um problema de insónias induzidas. Decidi que me poderia medicar mas isso custaria mais que comprar uma lâmpada nova, mas não gosto de comprar lâmpadas, então ponho queijo nos ouvidos que às vezes me esqueço de tirar e penso que estou a ficar surdo. Um rato comeu-me parte do tragus uma vez, desde esse dia só uso queijo de dieta, pode ser que não goste tanto. Mesmo assim não estou mais magro, mas também só peso sessenta quilos e até sou alto. Sendo assim até devia engordar mas estou mais empenhado em ganhar músculo, por isso faço exercício quase todos os dias, excluindo os cinquenta e um dias de noite em que fico deprimido, mas eu acho que isso é das insónias, tenho de me medicar. As lâmpadas dão luz como quem dá Sol mas só quando não o há. O meu galo costuma cantar fora de horas porque eu, volta e meia, ligo-lhe a lâmpada fora do horário de expediente. Às vezes o galo põe uns olhos de por favor come-me, o que é o mesmo que dizer, por favor mata-me. Mas o tempo trata disso, o tempo faz de nós todos cobardes. Já dizia o Unamuno… Não me lembro de uma única coisa que o Unamuno tenha dito. Quando cá cheguei, lembro-me das enormes montanhas repletas de neve que pareciam ser janelas para absolutamente nada, era uma terra nova onde os homens e as mulheres não choravam com medo de que as lágrimas congelassem, onde o chão não tinha a cor que lhe deram, mas todas ao mesmo tempo e mesmo assim tornava-se monótono e monocromático. O tempo era indicado conforme o número de horas que tinha o dia, não havia caos, tudo era previsível e quieto mal conseguíssemos perceber o malabarismo automático das suas atitudes. Não havia a vontade dos loucos adicionarem caos, não havia tempo para o fazer. Aqui todo o tempo está contado, todos os relógios sabem o que está a acontecer, não há horas extra onde o tempo não tem fim e o amanhã não chega. Isto curou-me, fez-me perceber a ideia de que não temos nada a fazer. Entendi que o mundo não precisa de homens inúteis, como nada de bom faço de nada vale que saibam quem sou. A história esquece todos os inúteis, mas espero que pelo menos deem luz ao meu galo. Não quero agoirar o escândalo discreto que isto vai ser, mas como a surpresa já está estragada, como acontece sempre nestas ocasiões, deveria acabar a minha carta de suicídio. Não digam nada de mal neste momento, nem noutro qualquer, é que ter tempo é algo tão cobarde como não o ter. Bem hajam.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O Mundo do Erostismo Esotérico, Parte 1: Glória Matinal ao Fim da Tarde


A cara dele transparecia alegria através da janela do seu pequeno quarto, enquanto esperava o anoitecer, ambiente muito mais solene para este tipo de ocasiões. Os monstros da etérea realidade exterior não o incomodavam, eram os seus que o torturavam com simpatia e modéstia, não fosse a sua alma tão etereamente tímida. Cantava com emoção surda para o dia que não viria. Algo que ele nunca iria ver. Este era um seu verdadeiro dilema, de pé sobre uma cadeira, de cara para a janela, uma montra do mundo que sempre lhe tentou vender o que nunca percebeu. A sua triste figura não se movia, fraca e esguia, com o cabelo entrelaçado em vários redemoinhos de adolescência rebelde e a pouca barba a despontar com a juventude que ainda lhe pertence. Seria isto de mais? Estar à espera de um momento do dia, que apenas por capricho se atrasava. Descendeu sobre o chão de sua casa, uma alcatifa quente e desconfortável para pés nus e receosos, e foi desfazer a barba que pouco se denotava. Como todo o homem que ainda não era facialmente muito áspero e ríspido, já tinha contado invariavelmente todos os pelos da sua mosca. Mais dois que da última vez, não seriam ainda os suficientes para poder desfazer todos os dias o que poderia vir um dia a odiar fazer na sua rotina diária. Pousou os seus óculos verdes sobre o descanso esquerdo do lavatório, penteou o cabelo para trás, mostrando as suas sobrancelhas assimétricas. Tinha orgulho dos seus movimentos de corte enquanto se barbeava, precisos, leves e rápidos que, invariavelmente, o cortavam. As gotas de sangue divertiam-se a escorrer pela pele, espalhando-se em pequenos fios, flutuavam pela água que se mantinha abraçada à sua face, formavam pequenos labirintos, que ele chegou a fotografar, pequenas macros que eram o seu retrato de um artista enquanto jovem. Espalhou por sua casa pequenos rios vermelhos já revelados, como todos os afluentes de vida mais devotos que nunca o abandonam, coagulados no tempo. O que o fascinava era que o sangue humano corria ao contrário, como se tivesse vontade de chegar à nascente estreita e perdida no acaso. Lavou-se e limpou os seus pés orgulhosos de civilização, dos seus cortes apenas restava o sangue seco parado e destituído de objetivo. Pensava em como poderia mudar as peças da sua sala, não gostava delas desde que a sua mãe as tinha mudado segundo as regras do prato 63 do restaurante chinês da rua 5 de Maio. Benditos eram todos os passos da sua mãe antes de chegar a casa. Livres. Já se fazia tarde, ela poderia chegar mais cedo. Ele continuava a pensar na possível tragédia que seria a sua mãe ficar com os turnos da noite na fábrica. Como ela ficava cansada nas noites longas em que tinha de o aturar em criança. Esperava que não se tivessem lembrado de a deixar sair mais cedo, ou que o José não tenha decidido dar mais um dos seus passeios parados no seu carro presidencial com ela e, simpaticamente, a trazer a casa, depois, de carro. Hoje não. Com pompa e circunstância, pôs-se de novo de pé sobre a cadeira, sapatos novos de fivela e o seu casaco de tweed. Delicadamente pousou os seus óculos na mesa, nem ele próprio se queria ver. Pôs o seu colar grosso e enrolado, adornado de um terço fluorescente, e enxotou a cadeira com um coice.
Haveria um bilhete em cima da mesa, pisado pelos seus óculos. Lá lia-se:
— Deus, cheguei eu à iluminação?
Ao que ele respondeu:
— Estou farto de pessoas que se armam em candeeiros.
Enquanto isto, o corpo do rapaz continua a baloiçar, exatamente ao mesmo ritmo que os outros, como no início dos tempos, como os dois pêndulos que a sua mãe lhe tinha oferecido e dos quais nunca conseguiu retirar a harmonia do movimento.