A cara dele transparecia alegria
através da janela do seu pequeno quarto, enquanto esperava o anoitecer,
ambiente muito mais solene para este tipo de ocasiões. Os monstros da etérea
realidade exterior não o incomodavam, eram os seus que o torturavam com
simpatia e modéstia, não fosse a sua alma tão etereamente tímida. Cantava com
emoção surda para o dia que não viria. Algo que ele nunca iria ver. Este era um
seu verdadeiro dilema, de pé sobre uma cadeira, de cara para a janela, uma
montra do mundo que sempre lhe tentou vender o que nunca percebeu. A sua triste
figura não se movia, fraca e esguia, com o cabelo entrelaçado em vários
redemoinhos de adolescência rebelde e a pouca barba a despontar com a juventude
que ainda lhe pertence. Seria isto de mais? Estar à espera de um momento do
dia, que apenas por capricho se atrasava. Descendeu sobre o chão de sua casa,
uma alcatifa quente e desconfortável para pés nus e receosos, e foi desfazer a
barba que pouco se denotava. Como todo o homem que ainda não era facialmente
muito áspero e ríspido, já tinha contado invariavelmente todos os pelos da sua
mosca. Mais dois que da última vez, não seriam ainda os suficientes para poder
desfazer todos os dias o que poderia vir um dia a odiar fazer na sua rotina
diária. Pousou os seus óculos verdes sobre o descanso esquerdo do lavatório,
penteou o cabelo para trás, mostrando as suas sobrancelhas assimétricas. Tinha
orgulho dos seus movimentos de corte enquanto se barbeava, precisos, leves e
rápidos que, invariavelmente, o cortavam. As gotas de sangue divertiam-se a
escorrer pela pele, espalhando-se em pequenos fios, flutuavam pela água que se
mantinha abraçada à sua face, formavam pequenos labirintos, que ele chegou a
fotografar, pequenas macros que eram o seu retrato de um artista enquanto
jovem. Espalhou por sua casa pequenos rios vermelhos já revelados, como todos
os afluentes de vida mais devotos que nunca o abandonam, coagulados no tempo. O
que o fascinava era que o sangue humano corria ao contrário, como se tivesse
vontade de chegar à nascente estreita e perdida no acaso. Lavou-se e limpou os
seus pés orgulhosos de civilização, dos seus cortes apenas restava o sangue seco
parado e destituído de objetivo. Pensava em como poderia mudar as peças da sua
sala, não gostava delas desde que a sua mãe as tinha mudado segundo as regras
do prato 63 do restaurante chinês da rua 5 de Maio. Benditos eram todos os passos
da sua mãe antes de chegar a casa. Livres. Já se fazia tarde, ela poderia
chegar mais cedo. Ele continuava a pensar na possível tragédia que seria a sua
mãe ficar com os turnos da noite na fábrica. Como ela ficava cansada nas noites
longas em que tinha de o aturar em criança. Esperava que não se tivessem
lembrado de a deixar sair mais cedo, ou que o José não tenha decidido dar mais
um dos seus passeios parados no seu carro presidencial com ela e,
simpaticamente, a trazer a casa, depois, de carro. Hoje não. Com pompa e
circunstância, pôs-se de novo de pé sobre a cadeira, sapatos novos de fivela e
o seu casaco de tweed. Delicadamente pousou os seus óculos na mesa, nem ele
próprio se queria ver. Pôs o seu colar grosso e enrolado, adornado de um terço
fluorescente, e enxotou a cadeira com um coice.
Haveria um bilhete em cima da
mesa, pisado pelos seus óculos. Lá lia-se:
— Deus, cheguei eu à iluminação?
Ao que ele respondeu:
— Estou farto de pessoas que se
armam em candeeiros.
Enquanto isto, o corpo do rapaz
continua a baloiçar, exatamente ao mesmo ritmo que os outros, como no início
dos tempos, como os dois pêndulos que a sua mãe lhe tinha oferecido e dos quais
nunca conseguiu retirar a harmonia do movimento.
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