sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O Mundo do Erostismo Esotérico, Parte 1: Glória Matinal ao Fim da Tarde


A cara dele transparecia alegria através da janela do seu pequeno quarto, enquanto esperava o anoitecer, ambiente muito mais solene para este tipo de ocasiões. Os monstros da etérea realidade exterior não o incomodavam, eram os seus que o torturavam com simpatia e modéstia, não fosse a sua alma tão etereamente tímida. Cantava com emoção surda para o dia que não viria. Algo que ele nunca iria ver. Este era um seu verdadeiro dilema, de pé sobre uma cadeira, de cara para a janela, uma montra do mundo que sempre lhe tentou vender o que nunca percebeu. A sua triste figura não se movia, fraca e esguia, com o cabelo entrelaçado em vários redemoinhos de adolescência rebelde e a pouca barba a despontar com a juventude que ainda lhe pertence. Seria isto de mais? Estar à espera de um momento do dia, que apenas por capricho se atrasava. Descendeu sobre o chão de sua casa, uma alcatifa quente e desconfortável para pés nus e receosos, e foi desfazer a barba que pouco se denotava. Como todo o homem que ainda não era facialmente muito áspero e ríspido, já tinha contado invariavelmente todos os pelos da sua mosca. Mais dois que da última vez, não seriam ainda os suficientes para poder desfazer todos os dias o que poderia vir um dia a odiar fazer na sua rotina diária. Pousou os seus óculos verdes sobre o descanso esquerdo do lavatório, penteou o cabelo para trás, mostrando as suas sobrancelhas assimétricas. Tinha orgulho dos seus movimentos de corte enquanto se barbeava, precisos, leves e rápidos que, invariavelmente, o cortavam. As gotas de sangue divertiam-se a escorrer pela pele, espalhando-se em pequenos fios, flutuavam pela água que se mantinha abraçada à sua face, formavam pequenos labirintos, que ele chegou a fotografar, pequenas macros que eram o seu retrato de um artista enquanto jovem. Espalhou por sua casa pequenos rios vermelhos já revelados, como todos os afluentes de vida mais devotos que nunca o abandonam, coagulados no tempo. O que o fascinava era que o sangue humano corria ao contrário, como se tivesse vontade de chegar à nascente estreita e perdida no acaso. Lavou-se e limpou os seus pés orgulhosos de civilização, dos seus cortes apenas restava o sangue seco parado e destituído de objetivo. Pensava em como poderia mudar as peças da sua sala, não gostava delas desde que a sua mãe as tinha mudado segundo as regras do prato 63 do restaurante chinês da rua 5 de Maio. Benditos eram todos os passos da sua mãe antes de chegar a casa. Livres. Já se fazia tarde, ela poderia chegar mais cedo. Ele continuava a pensar na possível tragédia que seria a sua mãe ficar com os turnos da noite na fábrica. Como ela ficava cansada nas noites longas em que tinha de o aturar em criança. Esperava que não se tivessem lembrado de a deixar sair mais cedo, ou que o José não tenha decidido dar mais um dos seus passeios parados no seu carro presidencial com ela e, simpaticamente, a trazer a casa, depois, de carro. Hoje não. Com pompa e circunstância, pôs-se de novo de pé sobre a cadeira, sapatos novos de fivela e o seu casaco de tweed. Delicadamente pousou os seus óculos na mesa, nem ele próprio se queria ver. Pôs o seu colar grosso e enrolado, adornado de um terço fluorescente, e enxotou a cadeira com um coice.
Haveria um bilhete em cima da mesa, pisado pelos seus óculos. Lá lia-se:
— Deus, cheguei eu à iluminação?
Ao que ele respondeu:
— Estou farto de pessoas que se armam em candeeiros.
Enquanto isto, o corpo do rapaz continua a baloiçar, exatamente ao mesmo ritmo que os outros, como no início dos tempos, como os dois pêndulos que a sua mãe lhe tinha oferecido e dos quais nunca conseguiu retirar a harmonia do movimento.

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