segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Pornografia do Nordeste Europeu, Parte 1: Morte ao Final Feliz


Detesto acordar de noite quando adormeço e ainda é de dia. Por isso não costumo adormecer bem de dia, mesmo assim não me incomoda acordar já com o dia bem aberto ou até com sinais de já querer fechar, algo que adquiri por habituação. Tudo isto soa estranho a alguém que não vive num pais nórdico como este que tem setenta e três dias em que apenas se vê o dia e cinquenta e um dias em que só se vê noite. Só uma vez me aconteceu acordar de noite adormecendo de dia e ainda hoje me arrependo de não prolongar o sofrimento com a visão neorromântica do pôr-do-sol. Aqui os galos não se dão bem, especialmente por causa do frio, porque o galo pode-se servir da luz que de quando em quando o ilumina quando me apetece que cante. Olho para a rua e vejo as lâmpadas que só funcionam após setenta e três dias de verão, aqui os candeeiros são mais interessantes que os animais, hibernam quando está calor, pelo menos o calor de cá. Mesmo assim não são mais interessantes que os galos, esses não hibernam, especialmente o meu, que até gosta quando lhe ponho a lâmpada a funcionar. Como só tenho uma lâmpada que funciona, de momento, metade do tempo estou eu com a luz a outra metade o galo, o que me levou a ter um problema de insónias induzidas. Decidi que me poderia medicar mas isso custaria mais que comprar uma lâmpada nova, mas não gosto de comprar lâmpadas, então ponho queijo nos ouvidos que às vezes me esqueço de tirar e penso que estou a ficar surdo. Um rato comeu-me parte do tragus uma vez, desde esse dia só uso queijo de dieta, pode ser que não goste tanto. Mesmo assim não estou mais magro, mas também só peso sessenta quilos e até sou alto. Sendo assim até devia engordar mas estou mais empenhado em ganhar músculo, por isso faço exercício quase todos os dias, excluindo os cinquenta e um dias de noite em que fico deprimido, mas eu acho que isso é das insónias, tenho de me medicar. As lâmpadas dão luz como quem dá Sol mas só quando não o há. O meu galo costuma cantar fora de horas porque eu, volta e meia, ligo-lhe a lâmpada fora do horário de expediente. Às vezes o galo põe uns olhos de por favor come-me, o que é o mesmo que dizer, por favor mata-me. Mas o tempo trata disso, o tempo faz de nós todos cobardes. Já dizia o Unamuno… Não me lembro de uma única coisa que o Unamuno tenha dito. Quando cá cheguei, lembro-me das enormes montanhas repletas de neve que pareciam ser janelas para absolutamente nada, era uma terra nova onde os homens e as mulheres não choravam com medo de que as lágrimas congelassem, onde o chão não tinha a cor que lhe deram, mas todas ao mesmo tempo e mesmo assim tornava-se monótono e monocromático. O tempo era indicado conforme o número de horas que tinha o dia, não havia caos, tudo era previsível e quieto mal conseguíssemos perceber o malabarismo automático das suas atitudes. Não havia a vontade dos loucos adicionarem caos, não havia tempo para o fazer. Aqui todo o tempo está contado, todos os relógios sabem o que está a acontecer, não há horas extra onde o tempo não tem fim e o amanhã não chega. Isto curou-me, fez-me perceber a ideia de que não temos nada a fazer. Entendi que o mundo não precisa de homens inúteis, como nada de bom faço de nada vale que saibam quem sou. A história esquece todos os inúteis, mas espero que pelo menos deem luz ao meu galo. Não quero agoirar o escândalo discreto que isto vai ser, mas como a surpresa já está estragada, como acontece sempre nestas ocasiões, deveria acabar a minha carta de suicídio. Não digam nada de mal neste momento, nem noutro qualquer, é que ter tempo é algo tão cobarde como não o ter. Bem hajam.

2 comentários:

  1. Bem bom. Boa conceção, desenvolvimento e ideia. De um claro e escuro relevante e frio como o caraças. Parabéns.

    João Madureira

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