quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O Giro para Fora, Parte 1: O Ataque Cardíaco do Muco Ácido


Estava um homem de pé, há sempre bastantes homens de pé e também mulheres, mas este era o homem da nossa história. De repente caiu para o lado.
­­— Porque é que não caiu para a frente?
Deu-lhe o que se chama vulgarmente de ataque cardíaco. Não se sabe de onde o homem veio, nem para onde ia, aquilo que interessou às pessoas com quem ele passou o resto da sua vida foi o que aconteceu naquele momento. Aquelas palavras pareceram-lhe tão estranhas, aproximavam-se daquela área da humanidade com que nunca contactou: enfarte agudo do miocárdio. A primeira coisa que ele não percebeu foi chamarem-lhe de agudo, já que ele achava aquilo bastante grave, ideia que o confundiu ainda mais quando começaram a dizer que a máquina que fazia bips estava desafinada. Músico como era reparou que ela estava desritmada, o que o fez pensar que os senhores com quem estava a lidar, além de gostarem muito de branco, não passavam de uma cambada de imbecis.
­­— Mas, ouve lá, o tipo teve um enfarte e agora está com fibrilação?
­­— Cala-te!
O homem pensou que o podiam achar um homem de poucas palavras, já que ele não falava muito, mas pareceu-lhe que ninguém ali estava à espera que ele dissesse alguma coisa. Pareciam absorvidos em olhos para tudo o que fosse ligeiramente plástico ou metálico ou eléctricos, ficou com pena por não possuir nenhuma dessas qualidades, além de não conseguir entender o linguajar desta gente. Comportamento que ele ignoraria mais tarde quando o electrizaram a ele, pareceu-lhe lógico que agora lhe ligassem mais importância. Isto confirmou a sua teoria de estar a lidar com a tal cambada com ligeiro atraso mental, porque a ele já lhe parecia estar suficientemente mal sem andarem por aí a dar-lhe choques. Por enquanto ainda pensava que o estarem a ignorar, além de ser uma falta de respeito, era completamente estúpido. Aí começou a pensar que afinal tinha sido abduzido por alienígenas extremamente parecidos a seres humanos, estupidez dos alienígenas porque já se sabe que ser humano não é aliene. Mas nunca pensou que um ser humano se pudesse comportar assim e logo por aí concluiu que eram seres não humanos. Por aí concluiu também que se eram seres não humanos não percebiam muito da poda. Conclusão que muito o ajudou a compreender os choques e o fraco ouvido musical. Daqui não concluiu mais nada.
— Porquê?
­­­­— Porque morreu porra!

domingo, 23 de setembro de 2012

O Mundo do Erostismo Esotérico, Parte 2: O Muco Ácido


“Pensava eu que as flores não podiam cair do céu, como um sopro num dente de leão que faz levitar sementes com o vento. Estas caíam um pouco mais violentamente, o vento não as acariciava tanto, tudo o que é grande não é querido. As pequenas coisas, como os bebés, os coalas e os grãos de areia safam-se sempre de serem olhados de má maneira. As pessoas sentem que a beleza está nos pormenores que não veem, mas apenas conseguem perceber isso naquilo que realmente conseguem enxergar, por mais mínimo que seja. Ligeiramente maldosa a hora do dia em que decidi que era boa ideia ler Rushdie sob o efeito de ácidos. Alterar a mente como tanto gostavam idiotas como o John Lennon nunca deve ajudar à cultura. Eles diziam que sim, que lhes retirava as barreiras do pensamento impostas pelo mundo. Eu por mim sinto que apenas existo em mim mesmo, se há uma barreira é só minha, sendo a mente minha exijo fazer dela o que eu quiser. A tarde estava serenada de gente calma, como se ainda ninguém tivesse percebido como o mundo se encontra. Como se ninguém tivesse entendido como as belas sinfonias que ouvem servem apenas para embelezar uma humanidade não humana. Teria de arrepiar caminho naquele dia. Deixei os “Filhos da Meia-Noite” no banco de jardim em que me sentei mais cedo, neste parque, e comecei a correr para ver se as flores paravam de chover. Foi quando dei conta que as flores choviam de árvores em Primavera, à saída do jardim, pensei então para mim, enquanto o mundo se afastava cada vez mais, que os ácidos ainda não eram suficientes. Por isso busquei o meu livro e levei-o para um banco de rua, pus mais um ácido na ponta da língua, a ver se as flores tinham vontade de descer de novo. Esta diligência cultural empreendida com tanta vontade não se podia continuar. Era difícil ler quando as letras coloridas já se mexiam. As flores pareciam ser hexágonos a voar das páginas para o céu, ou pelo menos parecia-o quando os meus olhos freneticamente fechavam e abriam para não ver quase nada. Sinto uma forte vontade de bater em alguém. Tenho de comprar uns sapatos de fivela com a semanada. Espancarei o vendedor ou vendedora de cor ou sem ela, se bem que este ácido seja maravilhoso para o racismo porque não há preto e branco, só cores brilhantes e vivas para todos. Se não há boa primeira aparência, pelo menos que a última seja decente. Espero que os sapatos tenham boa sola, arranjada com um bom desenho gravado na borracha, tudo o que se vê deve ser belo, se for eu a obra de arte que quero ser. Não gosto de me ver ao espelho, o Rushdie disse-me uma vez que o nariz grande não é um defeito, eu não acredito em homens de fé duvidosa. Se eu não tivesse fé, nem a minha mãe, não existia. Se eu não tivesse fé, porque a minha mãe não tinha fé, não poderia escolher se tinha fé ou não, mas poderia também ter dado menos trabalho à minha mãe. A consciência diz que talvez se não existisse… qualquer coisa. As pessoas são mesmo bonitas quando passam. As crenças de quem me olha são estranhas, como se um homem estivesse a falar em línguas sem respirar, acompanhado por um tambor que não para de percutir sempre o mesmo som de si mesmo desenfreadamente, enquanto um piano falha acordes e alguém bate com um martelo em madeira, depois tudo para e aparece um agudo apito sonoro que é quase infinito. Só desaparece quando deus o corta sentidamente com uma espada de pouca paciência. Estou ligeiro, peso pouco, a minha idade não me deixa ser maior. O meu mundo de adolescente colorido sem borbulhas — sinais vermelhos de repulsa para quem olha, sinais de stop para as miúdas giras, as menos giras são mais compreensivas mas não as quero — era algo de que gostava em pequenas doses. A realidade desfaz-se sempre em frente dos meus olhos. Como posso viver em algo que não acredito? Gostava que alguém morresse de ataque cardíaco à minha frente, alguém o fez neste momento. Sinto-me bem, mas não me sinto deste mundo, enquanto alguém morre eu permaneço vivo. Estou iluminado.”

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Como Fazer Amor com Crianças, Parte 1: O Cigano com Algum Dinheiro


As folhas voam perto da cabeça do rapaz sentado numa mota que girava sem sentido e voltava sempre à origem. As circunferências imperfeitamente desenhadas das folhas e do carrossel pareciam não acabar no aterrorizado olhar de seis anos do rapaz imóvel e contraído que possuía a firme convicção de que a queda de trinta centímetros o ia magoar severamente. Nos seus ouvidos ressoavam notas dispersas de música popular que a bonomia populista do cigano que comandava as operações tinha escolhido. As falhas óbvias de estilo eram compensadas pela literalmente não interpretada letra, que referia a identidade desconhecida do pai do filho de alguma mulher perdida no meio do mundo devasso e crítico. A versão era muito ligeira, com uma voz inocente de homem que atrai todos os outros homens que amam meninos. A ideia de esta canção parecer algo pouco usual aos olhos de uma criança é válida, mas ela não se mexia, nem se preocupava com a pérfida lírica deste homem cinzento. O raciocínio ainda não era completo, as palavras ainda não eram coesas, mas os olhos não paravam de ver. Preservar a inocência de uma criança é apenas um eufemismo para preservar a estupidez, mas o detalhe da música de circo, versão pós-erótica homenageando a má-língua, era desnecessário. A felicidade não se via, apenas a interrogação dos olhos. O entusiasmo desapareceu no preciso instante em que se sentou, levado por dois braços de gigante. Os braços da sua mãe eram firmes enquanto ele permanecia ligeiro. Olhou para a mãe e reparou como o seu rosto repentinamente espelhava desprezo. Momento exato em que o disco infinitamente repetido começava a tocar a música sobre origens semiológicas, o que o fez sentir-se mais pesado, os braços da mãe já não eram firmes, ele já sentia o medo de cair mesmo antes de se sentar. O desprezo provocado pelo mundo, de alguém que não o produz por si, para alguém que não o merece. Mas a preocupação que o atormentava ainda não era esta, o que sentia no momento era que “mais uma volta mais uma viagem” não devia ser algo de bom. Declaração assim percebida por sua exclusiva convicção, porque não havia mais ninguém que mostrasse interesse por tal viagem, ou que lhe impusesse algum tipo de sensação mudando plasticamente a cara. Tudo é mais pequeno depois de crescer e perceber, olhar e entender. O desprezo não se sente, ressente-se, mas isso só se vai compreender mais tarde. Quando a meia-noite chegar e o galo cantar. Não havia dúvida de que o dia não era muito bom, a luz já era muito e fraca e angular, mas só neste momento o Sol se mostrou, mais laranja que o habitual, por baixo das imensas nuvens melancolicamente vistas. Enquanto a criança olhava o mundo, caía na noite e no seu discreto absurdo, esta tornou a fazer desaparecer para aparecer, e a espera deixou de acontecer. A criança caiu mas não se sentiu mal, não lhe correram as lágrimas, não falou, ninguém olhou. Foi a primeira vez que desprezou a atenção que lhe trazia a pena. Ergueu-se, enquanto o cigano contava, a mãe se preocupava e o resto do mundo não estava ali. Andou, enquanto o dinheiro passava pelas mãos do cigano, a mãe sentia vergonha dentro do seu próprio pensamento e se preocupava tanto com a ideia de o mundo pensar tão mal dela, o próprio mundo que não estava presente, o mundo que pouco depois desapareceu. O menino continuou a andar e caiu pelo desfiladeiro abaixo, ninguém sabe porquê, ninguém sabe como, ninguém olhou. No fim já toda a gente via, a mãe chorava e o cigano fugia. Mais uma vida perdida para nunca mais ser. Uma mãe em desamparo que nunca mais sente, só ressente, uma vergonha que nunca foi dela.