terça-feira, 18 de setembro de 2012

Como Fazer Amor com Crianças, Parte 1: O Cigano com Algum Dinheiro


As folhas voam perto da cabeça do rapaz sentado numa mota que girava sem sentido e voltava sempre à origem. As circunferências imperfeitamente desenhadas das folhas e do carrossel pareciam não acabar no aterrorizado olhar de seis anos do rapaz imóvel e contraído que possuía a firme convicção de que a queda de trinta centímetros o ia magoar severamente. Nos seus ouvidos ressoavam notas dispersas de música popular que a bonomia populista do cigano que comandava as operações tinha escolhido. As falhas óbvias de estilo eram compensadas pela literalmente não interpretada letra, que referia a identidade desconhecida do pai do filho de alguma mulher perdida no meio do mundo devasso e crítico. A versão era muito ligeira, com uma voz inocente de homem que atrai todos os outros homens que amam meninos. A ideia de esta canção parecer algo pouco usual aos olhos de uma criança é válida, mas ela não se mexia, nem se preocupava com a pérfida lírica deste homem cinzento. O raciocínio ainda não era completo, as palavras ainda não eram coesas, mas os olhos não paravam de ver. Preservar a inocência de uma criança é apenas um eufemismo para preservar a estupidez, mas o detalhe da música de circo, versão pós-erótica homenageando a má-língua, era desnecessário. A felicidade não se via, apenas a interrogação dos olhos. O entusiasmo desapareceu no preciso instante em que se sentou, levado por dois braços de gigante. Os braços da sua mãe eram firmes enquanto ele permanecia ligeiro. Olhou para a mãe e reparou como o seu rosto repentinamente espelhava desprezo. Momento exato em que o disco infinitamente repetido começava a tocar a música sobre origens semiológicas, o que o fez sentir-se mais pesado, os braços da mãe já não eram firmes, ele já sentia o medo de cair mesmo antes de se sentar. O desprezo provocado pelo mundo, de alguém que não o produz por si, para alguém que não o merece. Mas a preocupação que o atormentava ainda não era esta, o que sentia no momento era que “mais uma volta mais uma viagem” não devia ser algo de bom. Declaração assim percebida por sua exclusiva convicção, porque não havia mais ninguém que mostrasse interesse por tal viagem, ou que lhe impusesse algum tipo de sensação mudando plasticamente a cara. Tudo é mais pequeno depois de crescer e perceber, olhar e entender. O desprezo não se sente, ressente-se, mas isso só se vai compreender mais tarde. Quando a meia-noite chegar e o galo cantar. Não havia dúvida de que o dia não era muito bom, a luz já era muito e fraca e angular, mas só neste momento o Sol se mostrou, mais laranja que o habitual, por baixo das imensas nuvens melancolicamente vistas. Enquanto a criança olhava o mundo, caía na noite e no seu discreto absurdo, esta tornou a fazer desaparecer para aparecer, e a espera deixou de acontecer. A criança caiu mas não se sentiu mal, não lhe correram as lágrimas, não falou, ninguém olhou. Foi a primeira vez que desprezou a atenção que lhe trazia a pena. Ergueu-se, enquanto o cigano contava, a mãe se preocupava e o resto do mundo não estava ali. Andou, enquanto o dinheiro passava pelas mãos do cigano, a mãe sentia vergonha dentro do seu próprio pensamento e se preocupava tanto com a ideia de o mundo pensar tão mal dela, o próprio mundo que não estava presente, o mundo que pouco depois desapareceu. O menino continuou a andar e caiu pelo desfiladeiro abaixo, ninguém sabe porquê, ninguém sabe como, ninguém olhou. No fim já toda a gente via, a mãe chorava e o cigano fugia. Mais uma vida perdida para nunca mais ser. Uma mãe em desamparo que nunca mais sente, só ressente, uma vergonha que nunca foi dela.

2 comentários:

  1. Fora algumas pequenas arestas, a prosa cresce e dimensiona-se. Parabéns. Quem escreve sempre alcança.

    João Madureira

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  2. feio e sujo!!!! imaginação?? não acho!!!
    Joaquina Sem Infância

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