domingo, 23 de setembro de 2012

O Mundo do Erostismo Esotérico, Parte 2: O Muco Ácido


“Pensava eu que as flores não podiam cair do céu, como um sopro num dente de leão que faz levitar sementes com o vento. Estas caíam um pouco mais violentamente, o vento não as acariciava tanto, tudo o que é grande não é querido. As pequenas coisas, como os bebés, os coalas e os grãos de areia safam-se sempre de serem olhados de má maneira. As pessoas sentem que a beleza está nos pormenores que não veem, mas apenas conseguem perceber isso naquilo que realmente conseguem enxergar, por mais mínimo que seja. Ligeiramente maldosa a hora do dia em que decidi que era boa ideia ler Rushdie sob o efeito de ácidos. Alterar a mente como tanto gostavam idiotas como o John Lennon nunca deve ajudar à cultura. Eles diziam que sim, que lhes retirava as barreiras do pensamento impostas pelo mundo. Eu por mim sinto que apenas existo em mim mesmo, se há uma barreira é só minha, sendo a mente minha exijo fazer dela o que eu quiser. A tarde estava serenada de gente calma, como se ainda ninguém tivesse percebido como o mundo se encontra. Como se ninguém tivesse entendido como as belas sinfonias que ouvem servem apenas para embelezar uma humanidade não humana. Teria de arrepiar caminho naquele dia. Deixei os “Filhos da Meia-Noite” no banco de jardim em que me sentei mais cedo, neste parque, e comecei a correr para ver se as flores paravam de chover. Foi quando dei conta que as flores choviam de árvores em Primavera, à saída do jardim, pensei então para mim, enquanto o mundo se afastava cada vez mais, que os ácidos ainda não eram suficientes. Por isso busquei o meu livro e levei-o para um banco de rua, pus mais um ácido na ponta da língua, a ver se as flores tinham vontade de descer de novo. Esta diligência cultural empreendida com tanta vontade não se podia continuar. Era difícil ler quando as letras coloridas já se mexiam. As flores pareciam ser hexágonos a voar das páginas para o céu, ou pelo menos parecia-o quando os meus olhos freneticamente fechavam e abriam para não ver quase nada. Sinto uma forte vontade de bater em alguém. Tenho de comprar uns sapatos de fivela com a semanada. Espancarei o vendedor ou vendedora de cor ou sem ela, se bem que este ácido seja maravilhoso para o racismo porque não há preto e branco, só cores brilhantes e vivas para todos. Se não há boa primeira aparência, pelo menos que a última seja decente. Espero que os sapatos tenham boa sola, arranjada com um bom desenho gravado na borracha, tudo o que se vê deve ser belo, se for eu a obra de arte que quero ser. Não gosto de me ver ao espelho, o Rushdie disse-me uma vez que o nariz grande não é um defeito, eu não acredito em homens de fé duvidosa. Se eu não tivesse fé, nem a minha mãe, não existia. Se eu não tivesse fé, porque a minha mãe não tinha fé, não poderia escolher se tinha fé ou não, mas poderia também ter dado menos trabalho à minha mãe. A consciência diz que talvez se não existisse… qualquer coisa. As pessoas são mesmo bonitas quando passam. As crenças de quem me olha são estranhas, como se um homem estivesse a falar em línguas sem respirar, acompanhado por um tambor que não para de percutir sempre o mesmo som de si mesmo desenfreadamente, enquanto um piano falha acordes e alguém bate com um martelo em madeira, depois tudo para e aparece um agudo apito sonoro que é quase infinito. Só desaparece quando deus o corta sentidamente com uma espada de pouca paciência. Estou ligeiro, peso pouco, a minha idade não me deixa ser maior. O meu mundo de adolescente colorido sem borbulhas — sinais vermelhos de repulsa para quem olha, sinais de stop para as miúdas giras, as menos giras são mais compreensivas mas não as quero — era algo de que gostava em pequenas doses. A realidade desfaz-se sempre em frente dos meus olhos. Como posso viver em algo que não acredito? Gostava que alguém morresse de ataque cardíaco à minha frente, alguém o fez neste momento. Sinto-me bem, mas não me sinto deste mundo, enquanto alguém morre eu permaneço vivo. Estou iluminado.”

1 comentário:

  1. Ácido quanto baste. E egoísta. E quase hedonista. Parabéns.

    João Madureira

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